quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

S.

Imagine acordar hoje sem lembrar que existiu um dia anterior em sua vida. Nenhum nome a dar ao corpo que se move para fora da cama. Não saber quem são as pessoas nas fotos da mesinha de cabeceira. Nada resta em sua mente além de algumas palavras vazias de significado. Você ainda sabe falar, mas não sabe o que falar nem por que deveria fazê-lo.
Esse é o protagonista da primeira experiência do cineasta J.J. Abrams na literatura. O S. que temos em mãos é um invólucro para outro livro, intitulado O Navio de Teseu, um livro de biblioteca que foi lido e rabiscado por outros dois leitores muito antes de chegar em nossas mãos. Dentro ainda existem papéis, documentos e cartões postais trocados entre os leitores. Mas quem são esses leitores? Quem é o autor, um tal de V.M. Straka? E o protagonista sem memória, o que ele vai fazer em meio a isso tudo?
Quanto à identidade do autor, podemos nos juntar à investigação dos dois leitores das margens, Eric e Jennifer, e buscar pistas, resolver códigos numéricos e linguísticos. Enquanto nos perdemos nisso, todas as questões são orquestradas e respondidas secretamente por outras duas mentes ocultas, nomeadas apenas no selo que rompemos antes de abrir o livro. J.J. Abrams e Doug Dorst.

Emily Berl/NYT
Em mais de uma entrevista, sempre ao lado de Dorst, Abrams expôs um medo que foi constante durante a produção deste livro: o risco de tudo parecer apenas um artifício, um truque do projeto gráfico a ofuscar o vazio de uma história possivelmente pouco interessante em segundo plano. Pois a ideia teve início assim, de modo artificioso, sem pretensões de significados maiores além de uma proposta gráfica inédita… e talvez promissora. O truque, portanto, dependeria de uma história que valesse a pena ser contada por meio desses artifícios; a dificuldade seria justificar o projeto gráfico. Abrams não teve pressa, levou mais de uma década para descobrir o caminho.
Tudo teve início em 1998, quando ele encontrou no aeroporto de Los Angeles um livro abandonado (The Cry of the Halidon, de Robert Ludlum), com uma anotação no interior:
Quem quer que encontre isso, por favor leia e deixe em algum lugar para outra pessoa encontrar.
Isso bastou para despertar em Abrams uma ideia que alterava a concepção do que entendemos ser um livro – uma comunicação entre autor e leitor. Em uma entrevista a CBS em 2013, ele disse que naquele momento conseguiu ver o livro como “uma embarcação de comunicação entre dois leitores”. Essa alteração da posição tradicional da leitura parece, por si só, um ponto de partida de enorme potencial, mas qual seria a essência do livro lido por essas duas pessoas? É aqui que, em fevereiro de 2009, entra Doug Dorst, autor de Alive in Necropolis (ainda sem tradução para o português).
Segundo o próprio J.J. Abrams, foi Dorst o responsável pela escrita do livro inteiro, com eventuais reuniões sobre o que estava sendo produzido aqui e acolá, o que de modo algum é uma novidade para Abrams. O cineasta que muitos aprenderam a idolatrar, criador das séries Alias, LOST e Fringe e responsável por revitalizar Star Trek e Star Wars, tem acumulado resultados brilhantes na arte de dividir a produção das histórias que conta. Sua constante é a imagem final, que parte de uma premissa de mistério – de se valorizar mais a pergunta do que uma resposta. Mas todas suas melhores produções compartilham também de uma sábia colaboração na escrita de roteiro. Embora tenha entrado em Hollywood, no início dos anos 90, ao assinar sozinho (ainda como Jeffrey Abrams) os roteiros de Eternamente Jovem, com Mel Gibson, e Uma Segunda Chance, com Harrison Ford, Abrams encontrou maior sucesso ao dividir a escrita de projetos como Armageddon e sua primeira série, Felicity. Foi durante essas produções que conheceu os frutos da escrita colaborativa com Adam Horowitz, quem depois foi levado à equipe de LOST – geralmente creditada, e criticada, apenas como produto da mente de Abrams. Vale lembrar que a série sobre os sobreviventes do voo 815 na ilha misteriosa teve a influência direta de Abrams apenas na primeira temporada, quando Damon Lindelof tomou o leme e se encarregou de guiar a escrita até o fim. Abrams não participou da segunda temporada pois se comprometeu a dirigir Missão Impossível III, com Roberto Orci e Alex Kurtzman – dois roteiristas que ele depois levou a Star Trek (Damon Lindelof também foi chamado ao time para o roteiro da continuação, Star Trek Into Darkness).
O que essa teia de nomes e colaborações recorrentes revela é que o sucesso de Abrams está, acima de tudo, em colocar-se na posição de maestro. As melhores histórias que ele nos conta, como é o caso de Star Wars: O Despertar da Força, são projetos cuja premissa e direção final carregam sua visão, mas cuja identidade se dissipa em outras mentes. Não por acaso, esse é o valor maior de S., que reflete sua colaboração na própria narrativa: a autoria é inescrutável.
O mistério maior de S., à primeira vista, nos parece ser sobre a identidade de V.M. Straka, o autor fictício criado por Abrams e Dorst, mas a característica essencial desse mistério esbarra em qualquer identidade que se deseje encontrar, como a do protagonista ou do próprio leitor, que aqui, ao lado de Eric e Jennifer, não tem o direito de existir livre para ser um só.
O título O Navio de Teseu, por sua vez, faz referência direta ao paradoxo proposto pelo historiador e filósofo grego Plutarco, que problematizou o costume de reformas da embarcação que teria levado Teseu até Creta, onde venceu o Minotauro. Plutarco conta que a embarcação foi preservada pelos atenienses por quase mil anos e propôs o desafio de explicarmos quando é que alguma coisa perde sua essência, quando é que deixa de ser o que a consideramos ser. Ao longo do suposto milênio, o navio usado por Teseu teve de passar por inúmeras reformas, sempre perdendo suas partes originais e sendo reconstruído com partes novas. Então, pergunta-se, ao se substituir a última parte constituinte do navio original, ele deixaria de ser O navio de Teseu?
Esse é um problema que nos inspira – e que naturalmente inspira S. – a questionar nosso próprio ato de autoria sobre as palavras que usamos para definir o que definimos. Algo é o que é à medida em que o nomeamos? A identidade do navio, das coisas e até de nós mesmos, existe à parte de nossas invenções? Para se responder, positiva ou negativamente, a esse paradoxo essencialista é necessário um ato de renúncia ou de aceitação. Devemos renunciar à capacidade de as palavras investigarem mistérios de uma realidade que elas próprias mal refletem, ou então aceitar que a realidade é tão inventada quanto o significado das palavras.

Quer saber mais sobre S. e o Navio de Teseu? Preparei uma resenha em vídeo no meu canal no YouTube: 


CURIOSIDADE

Escrevi esse texto no dia seguinte à morte de Umberto Eco, professor de todos nós amantes dos mistérios que nascem do uso das letras. Ainda em março deste ano devemos receber um livro póstumo seu, Pape Satan Aleppe, a ser publicado pela editora a que Eco se juntou pouco antes de falecer. O nome dela? La Nave di Teseo.

Se eu soubesse dessa curiosidade e da triste notícia antes de fazer o vídeo acima, teria acrescentado o lembrete de que Eco era, entre nossos contemporâneos, o semiólogo mais determinado a construir sobre as bases de Saussure (citado no vídeo) e Peirce, a unir supostas diferenças e a ampliar o estudo sobre os símbolos. Portanto, que esse vídeo sirva também como uma homenagem à área do saber que Eco tanto amava. E como um convite. Ao nosso constante retorno à linguística e aos avanços que a escrita de Eco nos trouxe.


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