segunda-feira, 16 de maio de 2016

a tração

Quando a glória de nossos pais é cantada com versos de temor, quando suas dores lhes deram a luta e a redenção, é quando nos afiamos com uma nociva ironia: aprendemos a temer determinada coisa e a desejá-la ao mesmo tempo.
Se toda história cumpre seu papel quando nos coloca nos passos e nos percalços dos heróis, como então aprender o valor da reverência sem enveredarmos agrilhoados pelos perigosos terrenos da encenação?
Este é o fio inextensível que nos mantém a todos falsamente caídos, suspensos, pêndulos, certos de mil liberdades. Só vivemos quando rodamos, e rondamos, porém, um centro à cuja face nunca levantamos os olhos; divisamos o que parece distante, fora de foco, mas que se trata apenas do chão, tão perto. Pontos da superfície em que mal tocamos são passageiros, como outros tantos pontos que ficam para trás antes que possamos percebê-los em detalhes, pontos cheios de particularidades que tornamos a não notar quando os reencontramos. Não temos certeza se rodamos à esquerda ou à direita, não há ar que toque a face e denuncie a direção a que seguimos. Sonhamos fugas tangenciais, aferimos planos antigos; às vezes dizemos a nós mesmos, Rompemos o fio!, é quando sentimos a resistência do ar e cogitamos ter saído enfim por aquela reta tão necessária; juramos já estar seguindo para longe, quando reabrimos os olhos e nos encontramos de volta, noutro ponto igual da rota pendular. Seguimos sós aos lugares em que estivemos, reaproximamos os velhos atos e ecoamos os gritos das dores daqueles outros que já não abrem a boca.
Aprendemos a temer, não a evitar a tração do desejo.
Desejamos o que tememos pois é só assim que nos sentimos em luta, numa luta que possamos chamar de nossa, que pensamos ser legítima.
Mas de legítima só há a dor que não tememos e não buscamos.
É aquela que rompe o fio quando estamos de olhos abertos.






terça-feira, 3 de maio de 2016

Um conto para o meu sobrinho

Cá estamos porque chegamos
(para ler este texto na íntegra, basta clicar aqui; disponível gratuitamente para assinantes do Kindle Unlimited!)

Ontem você chorou de dor e resolvi lhe escrever estas palavras.

Tenho tido a chance de observá-lo enquanto seus olhos descobrem cada detalhe deste mundo. Com quais cores seu quarto foi decorado? Qual a textura dos pelos daqueles três cachorros que te aguardam para brincar? O que é um cachorro? As palavras agora não existem. As palavras, você descobrirá, têm um jeito de serem nossas e de ninguém ao mesmo tempo. Pois são antes os sons que te interrompem as sensações, ruídos cantados que saem da boca dos outros te chamando para um mundo que ainda não é seu. Só lhe resta ter criatividade para inventar sentidos de acordo com a repetição de algumas sílabas; as mais frequentes, você está prestes a descobrir, já o identificavam antes mesmo de você chegar. E todas essas novidades sonoras encontram par no mundo visual. Fico curioso para saber quando será o instante exato em que, à noite, você de repente se dará conta de que uma daquelas luzes lá no alto não é a lâmpada de mais um poste, mas um disco branco e único acima das nuvens, entre milhares de pontinhos cintilantes.

Tantas coisas ainda têm tão pouco significado que é como se tudo ainda não tivesse nascido. Tudo ainda está por chegar, embora você já esteja aqui.

Em outras palavras, quando nos damos conta de que estamos aqui, há muito tempo chegamos e nem pudemos perceber o processo gradual de todas as outras coisas que chegam. É uma das trapaças da vida: só percebemos aquilo que foi, não aquilo que é. O dia de hoje só chega amanhã.

Ontem você chorou de dor.

– Quando você vai escrever um conto para o Bernardo? – seu pai me encorajou várias vezes. E há algum tempo eu me coloquei pensando sobre o que poderia escrever. A ideia implícita de se escrever um conto é a de que eu lhe contasse uma história, com início, meio e fim, uma ficção provavelmente, talvez no formato de um conto infantil, talvez algo mágico que te fizesse imaginar mundos, atos e cores, contos, afinal, como os que você terá ouvido e lido daqui a alguns anos. Mas resolvi contar algo melhor do que qualquer coisa que eu pudesse inventar. Vou lhe escrever um pouco sobre as coisas que você amanhã não terá condições de se lembrar.

Como você se recordaria do almoço de ontem, quando você ficou soltando puns, todo sorridente, sacudindo suas pernas no ar como se pedalasse uma bicicleta invisível, ali ao nosso lado da mesa, deitado em seu carrinho, dando os gritos de mais uma das suas conversas que não necessitam daquela coisa arriscada e imprecisa que inventamos e chamamos de compreensão? Não é uma injustiça enorme você não poder se lembrar desse dia? Ontem comíamos o almoço delicioso que sua inigualável avó Tânia, minha mãe, cozinhou. Ela é a melhor cozinheira desse mundo, pode acreditar no tio. Os olhos dela brilham quando encontram os seus, afinal de contas você esteve vivo ali dentro, dentro dos olhos dela, há muito tempo. Sabia disso? Esqueça as cegonhas (desculpa), o que nos trouxe até aqui foram os olhos de muitas pessoas que nunca poderemos conhecer. Olhos que se fecharam e se reabrem nos seus.

Se for complicado entender isso aí, pode pensar primeiro na barriga da sua mãe, e depois na barriga da minha mãe. Elas são como bonecas russas. Já ouviu falar dessas bonecas? Durante o almoço de ontem falamos sobre isso. Vou fazer como um dos meus autores preferidos costumava fazer (Kurt Vonnegut é o nome; vale a pena ler os livros dele!) e interromper o texto para desenhar uma dessas bonecas para você:



As mulheres têm esse superpoder e essa grande responsabilidade; elas permitem que nós continuemos a existir. Graças a elas, tudo que fazemos é chegar. Mesmo quando estamos partindo.